sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Jorge de Lima

"Jorge Mateus de Lima (União dos Palmares, 23 de abril de 1895Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1953) foi um político, médico, poeta, romancista, ensaísta, tradutor e pintor brasileiro. Mas foi a atividade como poeta que projetou seu nome.
Era filho de um comerciante rico e mudou-se para Maceió em 1902, com a mãe e os irmãos. Em 1909 foi morar em Salvador onde iniciou os estudos de medicina. Concluiu o curso no Rio de Janeiro em 1914. Neste mesmo ano publicou o primeiro livro, XIV Alexandrinos.
Voltou para Maceió em 1915, onde se dedicou à medicina até 1931, à literatura e à política. Nesse período publicou aproximadamente dez livros, sendo cinco de poesia. Também exerceu o cargo de deputado estadual, de 1918 a 1922. Com a Revolução de 1930 foi levado a radicar-se definitivamente no Rio de Janeiro.
No Rio, transformou seu consultório médico também em ateliê de pintura e ponto de encontro de intelectuais. Entre 1937 e 1945 teve sua candidatura à Academia Brasileira de Letras recusada por quatro vezes.
Em 1939 passou a dedicar-se também às artes plásticas, participando de algumas exposições. Em 1952, publicou seu livro mais importante, o épico Invenção de Orfeu. Em 1953, meses antes de morrer, gravou poemas para o Arquivo da Palavra Falada da Biblioteca do Congresso de Washington, nos Estados Unidos da América.
Sua obra divide-se em três fases mais distintas: a primeira, de cunho parnasianista/simbolista; a segunda, quando aderiu ao movimento modernista; e a terceira, quando seus livros exibiam um profundo traço surreal e religioso, notadamente católico." (fonte- wikipédia)

Quer conhecer poemas de Jorge de Lima? Leia nos comentários!

15 comentários:

Patrícia disse...

O homem comum

Não vou só pelo mundo:
vou com os caminhos,
vou com as nuvens,
vou com as coisas instáveis.
Vou com o meu desejo constante
de amanhecer outro homem.
Não vou só pelo mundo:
tenho ouvidos para ouvir,
tenho pés para ir adiante,
tenho joelhos para ajoelhar.
Não vou só pelo mundo:
vou com as nuvens que não param.
Não vou só pelo mundo:
vou com a paz.
Guerras na África sempre houve:
não quero ver brigas de reis.
Apareceu uma estrela em Abbeba.
Guerras, guerras, guerras sempre houve:
quero ver a estrela.
Amanhã morrerei:
ressuscitarei depois algum dia,
não sei que poemas formarei.

Jorge de lima

Renata disse...

Essa negra fulô


Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo)
no bangüê dum meu avô
uma negra bonitinha,
chamada negra Fulô.


Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!


Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
— Vai forrar a minha cama
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!


Essa negra Fulô!


Essa negrinha Fulô!
ficou logo pra mucama
pra vigiar a Sinhá,
pra engomar pro Sinhô!


Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!


Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
vem me ajudar, ó Fulô,
vem abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!
vem coçar minha coceira,
vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
que eu estou com sono, Fulô!


Essa negra Fulô!


"Era um dia uma princesa
que vivia num castelo
que possuía um vestido
com os peixinhos do mar.
Entrou na perna dum pato
saiu na perna dum pinto
o Rei-Sinhô me mandou
que vos contasse mais cinco".


Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!


Ó Fulô! Ó Fulô!
Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô!
"minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira
que o Sabiá beliscou".


Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!


Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá
Chamando a negra Fulô!)
Cadê meu frasco de cheiro
Que teu Sinhô me mandou?
— Ah! Foi você que roubou!
Ah! Foi você que roubou!


Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!


O Sinhô foi ver a negra
levar couro do feitor.
A negra tirou a roupa,
O Sinhô disse: Fulô!
(A vista se escureceu
que nem a negra Fulô).


Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!


Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê meu lenço de rendas,
Cadê meu cinto, meu broche,
Cadê o meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! foi você que roubou!
Ah! foi você que roubou!


Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!


O Sinhô foi açoitar
sozinho a negra Fulô.
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção,
de dentro dêle pulou
nuinha a negra Fulô.


Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!


Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê, cadê teu Sinhô
que Nosso Senhor me mandou?
Ah! Foi você que roubou,
foi você, negra fulô?


Essa negra Fulô!

Jorge de Lima

Renata disse...

Mulher proletária


Mulher proletária — única fábrica
que o operário tem, (fabrica filhos)
tu
na tua superprodução de máquina humana
forneces anjos para o Senhor Jesus,
forneces braços para o senhor burguês.


Mulher proletária,
o operário, teu proprietário
há de ver, há de ver:
a tua produção,
a tua superprodução,
ao contrário das máquinas burguesas
salvar o teu proprietário.

Jorge de Lima.

Renata disse...

Essa infanta


Essa infanta boreal era a defunta
em noturna pavana sempre ungida,
colorida de galos silenciosos,
extrema-ungida de óleos renovados.


Hoje é rosa distante prenunciada,
cujos cabelos de Altair são dela;
dela é a visão dos homens subterrâneos,
consolo como chuva desejada.


Tendo-a a insônia dos tempos despertado,
ontem houve enforcados, hoje guerras,
amanhã surgirão campos mais mortos.


Ó antípodas, ó pólos, somos trégua,
reconciliemo-nos na noite dessa
eterna infanta para sempre amada.

Jorge de Lima.

Renata disse...

Inverno


Zefa, chegou o inverno!
Formigas de asas e tanajuras!
Chegou o inverno!
Lama e mais lama
chuva e mais chuva, Zefa!
Vai nascer tudo, Zefa,
Vai haver verde,
verde do bom,
verde nos galhos,
verde na terra,
verde em ti, Zefa,
que eu quero bem!
Formigas de asas e tanajuras!
O rio cheio,
barrigas cheias,
mulheres cheias, Zefa!
Águas nas locas,
pitus gostosos,
carás, cabojés,
e chuva e mais chuva!
Vai nascer tudo
milho, feijão,
até de novo
teu coração, Zefa!
Formigas de asas e tanajuras!
Chegou o inverno!
Chuva e mais chuva!
Vai casar, tudo,
moça e viúva!
Chegou o inverno
Covas bem fundas
pra enterrar cana:
cana caiana e flor de Cuba!
Terra tão mole
que as enxadas
nelas se afundam
com olho e tudo!
Leite e mais leite
pra requeijões!
Cargas de imbu!
Em junho o milho,
milho e canjica
pra São João!
E tudo isto, Zefa...
E mais gostoso
que tudo isso:
noites de frio,
lá fora o escuro,
lá fora a chuva,
trovão, corisco,
terras caídas,
córgos gemendo,
os caborés gemendo,
os caborés piando, Zefa!
Os cururus cantando, Zefa!
Dentro da nossa
casa de palha:
carne de sol
chia nas brasas,
farinha d'água,
café, cigarro,
cachaça, Zefa...
...rede gemendo...
Tempo gostoso!
Vai nascer tudo!
Lá fora a chuva,
chuva e mais chuva,
trovão, corisco,
terras caídas
e vento e chuva,
chuva e mais chuva!
Mas tudo isso, Zefa,
vamos dizer,
só com os poderes
de Jesus Cristo!

Jorge de Lima.

Isis Priscila disse...

Pelo silêncio


Pelo silêncio que a envolveu, por essa
aparente distância inatingida,
pela disposição de seus cabelos
arremessados sobre a noite escura:


pela imobilidade que começa
a afastá-la talvez da humana vida
provocando-nos o hábito de vê-la
entre estrelas do espaço e da loucura;


pelos pequenos astros e satélites
formando nos cabelos um diadema
a iluminar o seu formoso manto,


vós que julgais extinta Mira-Celi
observai neste mapa o vivo poema
que é a vida oculta dessa eterna infanta.


Jorge de Lima

Isis Priscila disse...

Essa pavana


Essa pavana é para uma defunta
infanta, bem-amada, ungida e santa,
e que foi encerrada num profundo
sepulcro recoberto pelos ramos


de salgueiros silvestres para nunca
ser retirada desse leito estranho
em que repousa ouvindo essa pavana
recomeçada sempre sem descanso,


sem consolo, através dos desenganos,
dos reveses e obstáculos da vida,
das ventanias que se insurgem contra


a chama inapagada, a eterna chama
que anima esta defunta infanta ungida
e bem-amada e para sempre santa.

Jorge de Lima

Unknown disse...

Invenções de Orfeu


Canto III


Poemas relativos



I


Caída a noite
o mar se esvai,
aquele monte
desaba e cai
silentemente.


Bronzes diluídos
já não são vozes,
seres na estrada
nem são fantasmas,
aves nos ramos
inexistentes;
tranças noturnas
mais que impalpáveis,
gatos nem gatos,
nem os pés no ar,
nem os silêncios.


O sono está.
E um homem dorme.



II


Queres ler o que
tão só se entrelê
e o resto em ti está?
Flor no ar sem umbela
nem tua lapela;
flor que sem nós há.


Subitamente olhas:
nem lês nem desfolhas;
folha, flor, tiveste-as.


E nem as tocaste:
folha e flor. Tu - haste,
elas reais, mas réstias.



III


qualquer voz alou-se
muito desejada.
Branco fosse o espaço
e ela ardente cor.


Quis o espaço a voz
a voz veio e ampliou-o.


Mas se não houvesse
propriamente voz...


Vamos nós supô-los:
dois sem seus sentidos.


Desejemos mesmo
dois incompreensíveis.


Bom nos ecoarmos
na voz recebida.


E o espaço esvaziado
povoá-lo de vez.


Amá-los tão sem
amada presença,
só com o coração
sem correspondência,
só com a vocação
do verso feliz.



IV


Numas noites chegamos à janela,
e as mandíbulas do ar tanto nos roem,
que os leitos rotos logo deliqüescem
com os nossos corpos complacentemente.


Certos dias olhamos o sol claro;
e a boca hiante das cores nos devora
carnes e sangues, poeiras de costelas,
que ficamos inúteis, sem matéria.


Essas bocas nos sugam noite e dia,
vigiando dia e noite nossas vidas
um minuto no espaço, menos que ai
de chumbo soluçado nos silêncios,
ou cal de fome longa, revelada,
na noite igual ao dia, de tão gêmeos.



V


Agora o sem senso
sorriso nos ares,
minha alma perdida,
os vales lá embaixo
de minhas lonjuras
de não existido,
parado nos antes,
nem sei de pecados,
nem sei de mim mesmo,
eu mesmo não sou
nem nada me vê;
ausentes palavras
não soam no vácuo
dos antes das coisas,
das coisas sem nexo,
nem fluidos. Só o Verbo
chorando por mim.



VI


Agora, escutai-me
que eu falo de mim;
ouvi que sou eu,
sou eu, eu em mim;
tocai esses cravos
já feitos pra mim,
suores de sangue,
pressuados sem poros
verônica herdada.
sem face do ser.


Embora; escutai-me,
que eu falo com a voz
inata que diz
que a voz não é essa
que fala por mim,
talvez minha fala
saída de ti.



VII


Alegria achareis neste poema
como poema ilícito, como um
corpo casual ou vão, como a memória
dura e acídula, como um homem se
conhece respirando, ou como quando
se entristece sem causa ou se doente,
ou se lavando sempre ou comparando-se
às dimensões das coisas relativas;
ou como sente os ombros de seu ser,
transmitidos e opacos, e os avós
responsabilizando-se presentes.


São alegrias rápidas. Lugares,
reencontrados países, becos, passos
sob as chuvas que não vos molharão.



VIII


Se falta alguém nesses versos
pele vento interminável,
pelas arenas de estátuas,
sucedam-lhe os cegos olhos
sacudidos pelos medos,
mãos de chuvas lhe inteiricem
o corpo com algas remissas
e com matérias tranqüilas
tão soturna como os poços,
exasperados invernos,
ombros de escova comida,
as asas secas caídas,
ante seus netos calados;
e incorporem-se a esse alvitre
esse sabor de cortiça,
essas esponjas morridas,
essas marés estanhadas,
essas escunas de espáduas
estritamente fechadas
como casas de abandono,
restringem-se os conciliábulos,
certos sigilos de pez,
certas coisas enlutadas,
refúgios, dramas ocultos,
pois as rosas são de trapos
e os fios menos que teias,
menos que finos agora,
e as camisas sem os pêlos
enterrados nas ilhargas,
vestem enganos e punhos
e crimes em vez de adegas,
mas tudo em vão, mesmo as plumas,
mesmo os ausentes e as vozes
aderidas a fragmentos
aí moram degredadas,
listrando as grades, de faces
que não conhecem espelhos



IX


Numa hora perdida cantos doeram. Os desejos
E flores despenteadas, flores largas e a barbárie
e inconfidentes quase abominadas dos corpos.
por oculta paixão, se intumesceram. E a relatividade
do espírito
Lírios eram pilares de cristal sob o cerco
subindo para as aves; então dardos da matéria.
desceram sobre os mais amados colos
cantando amor com seus sentimentos.


Canção melhor. Mais consentimentos puros olhos. Eu
sei de cor os rebanhos, e olho o mundo.
Tudo contém pequenas doces máscaras.
Mas da selva selvagem desce o pranto
dos que mastigam suas próprias fomes,
sem saliva de pão, e o gosto ausente.


Ninguém consegue assim amar os lírios.
E esse amor é amaríssimo e adstringente
com a memória das dores engolidas.



X


Vós não viveis sozinhos
os outros vos invadem
felizes convivências
agregações incômodas
enfim ambientalismos,
e tudo subsistências
e mais comunidades;
e tantas ventanias
acotovelamentos,
desgastes de antemão,
acréscimos depois,
depois substituições,
a massa vos tragando,
as coisas vos bisando;
os hábitos, os vícios,
as moças embutidas
mudando vossas cartas;
sereis administrados
no sono e nos pecados,
vós mapas e diagramas
com várias delinqüências,
e insanidades várias,
dosando o vosso espaço,
pesando o vosso pão
de tempos racionados;
e não tereis vivido
e não tereis amado,
porém sereis morrido.



XI


Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime?
Clodoveu ou Clodovigo?
Éreis vós por acaso eles?
Éreis vós aqueles nomes,
estes, e os demais já mortos,
os mortos tão renovados
nós mesmos sempre chamados
Lútero, Lotário, otário,
sim otário tão singelo,
tão puro de todo o mal,
relativo, universal.


Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime?
Dizei-me se acaso vós
éreis eles ou voz sou
de algum avo tão otário,
tão eu mesmo como voz,
como poema de outros vários.



XII


O simples ar
de uma só corda
em curta raia,
mão de menino,
punhado escasso,
ar perfumado,
sem o alvoroço
dos vendavais;
anjo acolhido
em róseo céu
abrigo instante,
pranto lavado,
chorar em ti
de arrependido,
subir teus vales,
amar teu pólen,
nunca escapar-me
de tuas pétalas
cair com elas.



XIII


Uma janela aberta
e um simples rosto hirto,
e que provavelmente
nela se debruçou;
e nesse gesto puro
do rosto na janela
estava todo o poema
que ninguém escutou;
só a janela aberta
e o espaço dentro dela
que o tempo atravessou.



XIV


O contro era um dia,
um dia futuro,
e dentro do dia
incluído o conforme,
e dentro o que foi
porque fora isso
se tal não se dera,
se o mundo parasse
e o espaço se excluísse;
se a pedra não fosse
o símbolo que era
pois tudo era um dia,
um dia sem dia,
porém com o poeta
que um dia seria.



XV


De manhã estrelas verdes
na inocência do ar coleado,
intranqüilas e veementes.
Ao zênite e areia em sede,
asas das hastes pendidas,
as nuvens-castelas altas
como painas amealhadas.
De tarde a visão das velas,
nuvens baixas sobre as verdes
rosas das hastes fictícias;
os desejos dissolvidos
repousam abertamente;
e esse deserto de vozes
e estes cabelos perenes
de seus nervos para os dramas.
Mas se as palmas fossem isso,
as fontes seriam pratas,
e as pratas seriam o
puro sonho de quem vive.
Todavia o sonho é como
as palmas dessas palmeiras.
Eis as palmas.



XVI


Os dois ponteiros
rodam e rodam,
mostrando o horário
irregular.
Horas inteiras
despedaçadas,
horas mais horas
desmesuradas.
Com seu compasso,
lá vem a morte
pra teu transporte,
e com os dois braços:
esta é tua hora,
levo-te agora.



XVII


Um te exalou
nessa incidência:
céu, terra, mar;
impermanência.
Outro te andou
te indo e te vindo
pra te juntares,
te convergindo
Quem te volou,
esse te deu
o sono no ar.
Esse te entoou
e te nasceu
sem te acordar.



XVIII


No dia seguinte:
chamamos de terra,
o poema te leva
te dana, te agita,
te vinca de cruzes,
te envolve de nuvens.
Quem sabe aonde vai
parar no outro dia?



XIX


Roteiros vencidos
compassam a festa:
a noiva está fria
no véu lamentado.
Três potros desfraldam-se
três faces transcorrem
no coche morrido,
em vão galopado.
O nome do noivo?
O nome da noiva?
O nome do diabo?
Três nomes corridos,
três sombras penadas
no drama calado.



XX


Aqui e ali
me encontrareis,
entre um poema
ou em seu curso,
além e aquém,
oculto e claro,
vivo ou demente,
ou mesmo morto,
ou renascido
como meu sósia,
intermitente,
ferida tórpida.
pulso de febre,
nesse cavalo,
naquela tinta,
naquele poema
quase alicerce,
quase esse infante,
esse anjo surdo.
Ia esquecendo:
eu e meu sósia
somos momentos
entrelaçados.
Ei-lo veemente
volta a seu palco,
sobe a uma origem,
desce de novo,
envolto ou nu,
esse homem gêmeo,
jamais verdugo,
mas palma incerta,
sendo meu pai,
meu filho e neto
e aquele longe
porém limiar,
malgrado e clâmide
aberta e alípede,
foi argonauta,
podia se-lo
se esse jacinto
não fosse canto,
canto de galo
crepuscular,
profusamente
cedo se oculta
por essas laudas
sem perceber
seu fácil ímpeto
ante a palavra
visualizada;
mas de repente
desaparece.
Agora eu surjo
naquela esquina,
naquele pórtico
falam de mim;
ouço transido
esses vocábulos
desconhecidos,
emerjo em rios
que vão passar,
mergulho em rumos
acontecidos,
sucedo em mim,
depois vou indo
fundo e arrastado
na correnteza
que é de repentes.
Morto incorrupto
guardo meus naipes
mais pressentidos,
intercadentes,
desordenados,
não há atavios,
não há disfarces,
dissolução
dos prantos largos
manando laivos,
lanhando aspectos;
desacredito-me
perante os leves,
nem sabedor
de alas longevas,
se o porvindouro
é puro exórdio
precocemente
desencantado;
se os seus presságios
remanescidos,
salvo-condutos
manifestados;
correm desvios
vulgares trilhos,
que todavia
prossigo em mim,
minha progênie,
uns dementados,
outros co-réus,
reconciliando-me
com os mutilados
e este glossário
que é de meu sósia;
abastecido
alego dores,
crescentes cargas;
me patenteio,
fico exaltado
sem parecer;
depois me espreito
na curva adiante,
simbolizado,
metade em mim
inda nascendo,
a outra metade
superlotada;
então me sano
excluindo as nucas
executáveis;
não evidentes
nem aberrante
me envolvo de alma,
doce alimária
com alguns anexos
aparelhados
para colher
belas paisagens
e outros petrechos
do sósia amado;
quero sofrer-me,
quero imitar-me,
fico enpunhado
meu corpo no ar,
dependurado,
meio aderido
a alguns palhaços
insimulados,
portanto, instáveis,
muito insossos,
muitos até
beatificados;
ventos corteses
bem-parecidos
vêm agitar
nosso espantalho,
enquanto as aves
canoramente
se desaninham
de nossos braços,
ossos atados
a chão deitados,
chãos contestados
por figadais,
mas afinal
chãos estrelados
de algumas plantas
ambicionadas
por umas moças
que andando sós
se despetalam
e virar brisas,
fagueiras asas,
pelas janelas
passam nos vidros,
vão aos relógios
param os cucos,
e a vila fica
inteiriçada.
dormindo dentro
desse poema
recomeçado
por novo sósia.



XXI


As portas finais,
os cantos iguais,
os pontos cardeais,
sempre obsidionais.
Os tempos anuais,
as faces glaciais,
as culpas filiais
sempre obsidionais.
Os dois iniciais,
as dores tais quais,
os juízos finais
sempre obsidionais.



XXII


Era uma vinda,
dadas as luzes,
dadas as faces
que ali se achavam,
nenhuma espúria,
nenhuma enferma,
dadas as cores,
dadas as falas
que ali se achavam;
dadas as provas
dessas presenças
deu-se o milagre
em aços doces,
em gumes brandos
em chamas graves;
formou-se um gênio
pentangular
que começava
com a estrela Vésper,
riscando a noite
sem se acabar;
formou-se um lírio
na suave treva,
gerou-se um grito
de tantas vozes,
criou-se um fogo
correspondente,
jorrou-se um pranto
desabitado.
Era uma tarde:
ninguém sabia
o que no mundo
ia acabar.
Sei que houve portas
escancaradas,
sei que houve apelos
antiencarnados.
E houve um dilúvio,
mas era um fogo
desabrochado.



XVIII


Quando menos se pensa
a sextina é suspensa.
E o júbilo mais forte
tal qual a taça fruída,
antes que para a morte
vá o réu da curta vida.
Ninguém pediu a vida
ao nume que em nós pensa.
Ai carne dada à morte!
morte jamais suspensa
a taça sempre fruída
última, única e forte.
Orfeu e o estro mais forte
dentro da curta vida
a taça toda fruída,
fronte que já não pensa
canção erma, suspensa,
Orfeu diante da morte.
Vida, paixão e morte,
- taças ao fraco e ao forte,
taças - vida suspensa.
Passa-se a frágil vida,
e a taça que se pensa
eis rápida fruída.
Abandonada, fruída,
esvaziada na morte,
Orfeu já não mais pensa,
Calado o canto forte
em cantochão da vida,
cortada ária, suspensa.
Lira de Orfeu. Suspensa!
Suspensa! Ária fruída,
sextina artes da vida
ser rimada na morte.
Eis tua rima forte:
rima que mais se pensa.



XXIV


A sextina começa
de novo uma ária espessa,
(sextina da procura!)
Eurídice nas trevas,
Ó Eurídice obscura.
Eva entre as outras Evas.
Repousai aves, Evas,
que a busca recomeça
cada vez mais obscura
da visão mais espessa
repousada nas trevas
Ah! difícil procura!
Incessante procura
entre noturnas Evas,
entre divinas trevas,
Eurídice começa
a trajetória espessa,
a trajetória obscura.
Desceu à pátria obscura
em que não se procura
alguém na sombra espessa
e onde sombras são Evas,
e onde ninguém começa,
mas tudo acaba em trevas.
Infernos, Evas, trevas,
lua submersa e obscura.
Aí a ária começa,
e não finda a procura
entre as celeste Evas
a Eva da terra espessa.
Eurídice, Eva espessa,
musa de doces trevas,
mais que todas as Evas -
musa obscura, Eva obscura;
sextina que procura
acabar, e começa.



XXV


A musa A barba tão preta que era azul,
morta que as amantes tão ruivas que eram nulas
vem de Amara onze e mais uma, numa só
outros morta, em alma, sem cadáver, sem
livros tumba, e que amara - morta, morta, morta.



XXVI


Sombra encantada, declinara
num vago dia, incerto dia.
Eis uma deusa, pelos gestos,
por sua dança, sua órbita.
Era preciso compreendê-la,
mas quando nós a avizinhávamos,
a deusa arisca recuava.
Se nós recuávamos, voltava
ao nosso encontro, sem tocar-nos.
Então corríamos, devassos,
quase enlaçando-a: ela fugia.
Era uma deusa pelos modos
com que mentia e se ausentava.
Mas outro dia, vago dia,
abrutamente a aprisionamos.
O que tu és, deusa, ignoramos,
mas desejamos, qualquer coisa
fazer de ti, terror ou júbilo
ou nossa vênus favorável
ou nossa esfera de vocábulos.
Ela chorava, não queria;
e o pranto logo dissolvia.
Então descemos, ventre abaixo
e renascemos de seu sexo,
- trânsito virgem de palavras.
Era uma deusa, pela fúria
com que nós todos a ultrajamos.
Era uma deusa e não sabíamos
se cada qual mesmo a violou.
Era uma deusa, pela dúvida
que em cada um de nós, deixou.



XXVII


Contemplar o jardim além do odor
e a mulher silenciosa entre semblantes,
e refazê-los todos, todos antes
que o tempo condenado os atraiçoe.
Porque eu quero, em memória refazê-los: À procura da
flor longínqua, mulher, não pertencida, face perdida
substância inexistente, móvel vida,
intercessão de nadas e cabelos.
E meus olhos ausentes me espiando
entre as coisas caducas e fugaces
a minha intercessão em outras faces.
Orfeu, para conhecer teu espetáculo,
em que queres senhor, que eu me transforme,
ou me forme de novo, em que outro oráculo?

Renata disse...

O grande desastre aéreo de ontem




Para Cândido Portinari




Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva, abraçado com a hélice. E o violinista em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabeleira negra e seu estradivárius. Há mãos e pernas de dançarinas arremessadas na explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor. Vejo sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos poetas mártires. Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais rápida porque vem sem vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas, como se dançassem ainda. E vejo a louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser o paraquedas, e a prima-dona com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu como um cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados pelos pobres mortos. Presumo que a moça adormecida na cabine ainda vem dormindo, tão tranqüila e cega! Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do vento. Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E há poetas míopes que pensam que é o arrebol.

LIMA, Jorge de. Poesia completa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980, 2 v, v. 1, p. 237).

Unknown disse...

Madorna de Iaiá




Iaiá está na rede de tucum.
A mucama de Iaiá tange os piuns,
Balança a rede,
Canta um lundum
Tão bambo, tão molengo, tão dengoso,
Que Iaiá tem vontade de dormir

Com quem?

Rem-rem.

Que preguiça, que calor!
Iaiá tira a camisa,
Toma aluá
Prende o cocó,
Limpa o suor
Pula pra rede.

Mas que cheiro gostoso tem Iaiá!
Que vontade doida de dormir,,,

Com quem?

Cheiro de mel da casa das caldeiras!
O saguim de Iaiá dorme num coco.

Iaiá ferra no sono
Pende a cabeça,
Abre-se a rede
Como uma ingá.

Para a mucama de cantar,
Tange os piuns,
Cala o ram-rem,
Abre a janela,
Olha o curral:
- um bruto sossego no curral!

Muito longe uma peitica faz si-dó....
Si-dó.....si-dó......si-dó....

Antes que Iaiá corte a madorna
A moleca de Iaiá
Balança a rede,
Tange os piuns,
Canta um lundum
Tão bambo,
Tão molengo,
Tão dengoso,
Que Iaiá sem se acordar,
Se coça,
Se estira
E se abre toda, na rede de tucum.

Sonha com quem?

rodrigues disse...

Anjo daltônico


Tempo da infância, cinza de borralho,
tempo esfumado sobre vila e rio
e tumba e cal e coisas que eu não valho,
cobre isso tudo em que me denuncio.


Há também essa face que sumiu
e o espelho triste e o rei desse baralho.
Ponho as cartas na mesa. Jogo frio.
Veste esse rei um manto de espantalho.


Era daltônico o anjo que o coseu,
e se era anjo, senhores, não se sabe,
que muita coisa a um anjo se assemelha.


Esses trapos azuis, olhai, sou eu.
Se vós não os vedes, culpa não me cabe
de andar vestido em túnica vermelha.

Jorge de Lima

Unknown disse...

As Grandes Horas e a Antiga Vigília

A multidão era imensa
e a voz começa a dizer
que não podia falar na primeira pessoa,
que os poetas eram inúmeros na terra.
E todos se entreolharam e viram que eram poetas.
Todos tinham sido humilhados, todos tinham sido roubados, todos tinham setas no lado esquerdo do corpo.
E já era de tarde e todos aqueles poetas cantaram
a Véspera do Senhor.E a noite chegou e todos aqueles poetas ficaram acordados escutando as grandes horas e esperando na antiga vigília.

E o galo cantou : e milhões e milhões de sirenas
De fábricas cantaram matinas. E o dia acordou .E todos aqueles poetas viram o Dia subir. E subira, com o Dia.
E cantaram Laudes ao Senhor.

Unknown disse...

Distribuição da Poesia


Mel silvestre tirei das plantas,

sal tirei das águas, luz tirei do céu.

Escutai, meus irmãos : poesia tirei de tudo

para oferecer ao Senhor.

Não tirei ouro da terra

nem sangue de meus irmãos.

Estalajadeiros e banqueiros

Sei fabricar distâncias

para vos recuar.

A vida está malograda,

creio nas mágicas de Deus.

Os galos não cantam,

a manhã não raiou.

Vi os navios irem e voltarem.

Vi os infelizes irem e voltarem.

Vi homens obesos dentro do fogo.

Vi ziguezagues na escuridão.

Capitão-mor, onde é o Congo?

Onde é a ilha de São Brandão?

Capitão-mor, que noite escura!

Uivam molossos na escuridão.

Ó indesejáveis, qual o país,

qual o país que desejais?

Me silvestre tirei das plantas,

sal tirei das águas, luz tirei do céu.

Só tenho poesia para vos dar.

Abancai-vos, meus irmãos.

Unknown disse...

O POETA DIANTE DE DEUS



Senhor Jesus, o século está pobre.

Onde é que vou buscar poesia?

Devo despir-me de todos os mantos,

os belos mantos que o mundo me deu.

Devo despir o manto da poesia.

Devo despir o manto mais puro.

Senhor Jesus, o século está doente,

o século está rico, o século está gordo.

Devo despir-me do que é belo,

devo despir-me da poesia,

devo despir-me do manto mais puro

que o tempo me deu, que a vida me dá.

Quero leveza no vosso caminho.

Até o que é belo me pesa nos ombros,

até a poesia acima do mundo,

acima do tempo, acima da vida,

me esmaga na terra, me prende nas coisas.

Eu quero uma voz mais forte que o poema,

mais forte que o inferno, mais dura que a morte :

eu quero uma força mais perto de Vós.

Eu quero despir-me da voz e dos olhos,

dos outros sentidos, das outras prisões,

não posso Senhor : o tempo está doente.

Os gritos da terra, dos homens sofrendo

me prendem, me puxam ­ me daí Vossa mão.

Unknown disse...

TARDE OCULTA NO TEMPO


Andarilho sem destino reparou então

que seus sapatos tinham a poeira diferente

de todas as pátrias pitorescas;

e que seus olhos conservavam as noites e os dias

dos climas mais vários do universo;

e que suas mãos se agitaram em adeuses

a milhares de cais sem saudades e amigos;

e que todo o seu corpo tinha conhecido

as mil mulheres que Salomão deixou.

E o andarilho sem destino viu

que não conhecia a Tarde que está oculta no tempo

sem paisagens terrenas, sem turismos, sem povos,

mas com a vastidão infinita onde os horizontes

são as nuvens que fogem.