sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Murilo Mendes

Murilo Monteiro Mendes (Juiz de Fora, 13 de maio de 1901Lisboa, 13 de agosto de 1975) foi um poeta brasileiro, expoente do modernismo brasileiro.
Dentista, telegrafista, auxiliar de guarda-livros, notário e Inspetor do Ensino Secundário do Distrito Federal. Foi escrivão da quarta Vara de Família do Distrito Federal, em 1946. De 1953 a 1955 percorreu diversos países da Europa, divulgando, em conferências, a cultura brasileira. Em 1957 se estabeleceu em Roma, onde lecionou Literatura Brasileira. Manteve-se fiel às imagens mineiras, mesclando-as às da Sicília e Espanha, carregadas de história.
Iniciou-se na literatura escrevendo nas revistas modernistas Terra Roxa, Outras Terras e Antropofagia.
Obra. Os livros Poemas (1930), História do Brasil (1932) e Bumba-Meu-Poeta, escrito em 1930, mas só publicado em 1959, na edição da obra completa intitulada Poesias (1925-1955), são claramente modernistas, revelando uma visão humorística da realidade brasileira. Tempo e Eternidade (1935) marca a conversão de Murilo Mendes ao catolicismo. Nesse livro, os elementos humorísticos diminuem e os valores visuais do texto são acentuados. Foi escrito em colaboração com o poeta Jorge de Lima. Nos volumes da fase seguinte, Poesia em Pânico (1938), O Visionário (1941), As Metamorfoses (1944) e Mundo Enigma (1945), o poeta apresenta influência cubista, superpondo imagens e fazendo o plástico predominar sobre o discursivo. Poesia Liberdade (1947), como alguns outros livros do poeta, foi escrito sob o impacto da guerra, refletindo a inquietação do autor diante da situação do mundo. Em 1954, saiu Contemplação de Ouro Preto, em que Murilo Mendes alterou sua linguagem e suas preocupações, reportando-se às velhas cidades mineiras e sua atmosfera. Daí por diante, o poeta lançou-se a novos processos estilísticos, realizando uma poesia de caráter mais rigoroso e despojado, como em Parábola (1946-1952) e Siciliana (1954-1955), publicados em Poesias (1925-1955). As características desse período atingem sua melhor realização no livro Tempo Espanhol (1959). Em 1970, Murilo Mendes publicou Convergência, um livro de poemas vanguardistas. Murilo Mendes também publicou livros de prosa, como O Discípulo de Emaús (1944), A Idade do Serrote (1968), livro de memórias, e Poliedro ( 1972). Ao morrer, em Lisboa, deixou inéditas várias obras. (fonte- wikipédia)

Poemas do autor, nos comentários

46 comentários:

Unknown disse...

JANDIRA


O mundo começava nos seios de Jandira.

Depois surgiram outras peças da criação:
Surgiram os cabelos para cobrir o corpo,
(Às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos.)
E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.
E surgiram sereias da garganta de Jandira:
O ar inteirinho ficou rodeado de sons
Mais palpáveis do que pássaros.
E as antenas das mãos de Jandira
Captavam objetos animados, inanimados.
Dominavam a rosa, o peixe, a máquina.
E os mortos acordavam nos caminhos visíveis
[ do ar
Quando Jandira penteava a cabeleira...

Depois o mundo desvendou-se completamente,
Foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.
E Jandira apareceu inteiriça,
Da cabeça aos pés,
Todas as partes do mecanismo tinham
[ importância.
E a moça apareceu com o cortejo do seu pai,
De sua mãe, de seus irmãos.
Eles é que obedeciam aos sinais de Jandira
Crescendo na vida em graça, beleza, violência.
Os namorados passavam, cheiravam os seios de
[ Jandira
E eram precipitados nas delícias do inferno.
Eles jogavam por causa de Jandira,
Deixavam noivas, esposas, mães, irmãs
Por causa de Jandira.
E Jandira não tinha pedido coisa alguma.
E vieram retratos no jornal
E apareceram cadáveres boiando por causa de
[ Jandira.
Certos namorados viviam e morriam
Por causa de um detalhe de Jandira.
Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira
Outro, por causa de uma pinta na face esquerda
[ de Jandira.

E seus cabelos cresciam furiosamente com a força
[ das máquinas;
Não caía nem um fio,
Nem ela os aparava.
E sua boca era um disco vermelho
Tal qual um sol mirim.
Em roda do cheiro de Jandira
A família andava tonta.
As visitas tropeçavam nas conversações
Por causa de Jandira.
E um padre na missa
Esqueceu de fazer o sinal-da-cruz por causa de
[ Jandira.

E Jandira se casou
E seu corpo inaugurou uma vida nova.
Apareceram ritmos que estavam de reserva.
Combinações de movimento entre as ancas e os
[ seios.
À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas
[ que repetem
As formas e os sestros de Jandira desde o
[ princípio do tempo.

E o marido de Jandira
Morreu na epidemia de gripe espanhola.
E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.
Desde o terceiro dia o marido
Fez um grande esforço para ressuscitar:
Não se conforma, no quarto escuro onde está,
Que Jandira viva sozinha,
Que os seios, a cabeleira dela transtornem a
[ cidade
E que ele fique ali à toa.

E as filhas de Jandira
Inda parecem mais velhas do que ela.
E Jandira não morre,
Espera que os clarins do juízo final
Venham chamar seu corpo,
Mas eles não vêm.
E mesmo que venham, o corpo de Jandira
Ressuscitará inda mais belo, mais ágil e
[ transparente.

Patrícia disse...

ANGÚSTIA E REAÇÃO

Há noites intransponíveis,
Há dias em que pára nosso movimento em Deus,
Há tardes em que qualquer vagabunda
Parece mais alta do que a própria musa.
Há instantes em que um avião
Nos parece mais belo que um mistério de fé,
Em que uma teoria política
Tem mais realidade que o Evangelho.
Em que Jesus foge de nós, foi para o Egito;
O tempo sobrepõe-se à idéia do eterno.
É necessário morrer de tristeza e de nojo
Por viver num mundo aparentemente abandonado por Deus,
E ressuscitar pela força da prece, da poesia e do amor.
É necessário multiplicar-se em dez, em cinco mil.
É necessário chicotear os que profanam as igrejas
É necessário caminhar sobre as ondas.

Murilo Mendes

Renata disse...

Canção do exílio


Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia.



Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!


In: MENDES, Murilo. Poesias, 1925/1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959

Renata disse...

A mãe do primeiro filho


Carmem fica matutando
no seu corpo já passado.


— Até à volta, meu seio
De mil novecentos e doze.
Adeus, minha perna linda
De mil novecentos e quinze.
Quando eu estava no colégio
Meu corpo era bem diferente.
Quando acabei o namoro
Meu corpo era bem diferente.
Quando um dia me casei
Meu corpo era bem diferente.
Nunca mais eu hei de ver
Meus quadris do ano passado...


A tarde já madurou
E Carmem fica pensando.

Murilo Mendes

Renata disse...

Cartão postal


Domingo no jardim público pensativo.
Consciências corando ao sol nos bancos,
bebês arquivados em carrinhos alemães
esperam pacientemente o dia em que poderão ler o Guarani.
Passam braços e seios com um jeitão
que se Lenine visse não fazia o Soviete.
Marinheiros americanos bêbedos
fazem pipi na estátua de Barroso,
portugueses de bigode e corrente de relógio
abocanham mulatas.



O sol afunda-se no ocaso
como a cabeça daquela menina sardenta
na almofada de ramagens bordadas por Dona Cocota Pereira.


In: MENDES, Murilo. Poesias, 1925/1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959

Renata disse...

A tentação



Diante do crucifixo
Eu paro pálido tremendo
“ Já que és o verdadeiro filho de Deus
Desprega a humanidade desta cruz”.



In: Poesia liberdade. Rio de Janeiro, Agir, 1947.

Renata disse...

As lavadeiras



As lavadeiras no tanque noturno
Não responderam ao canto da sibila.



“Lavamos os mortos,
Lavamos o tabuleiro das idéias antigas
E os balaústres para repouso do mar...
Nele encontramos restos de galeras,
Quem nos desviará do nosso canto obscuro?
Nele descobrimos o augusto pudor do vento,
O balanço do corpo do pirata com argolas,
Nele promovemos a sede do povo
E excitamos a nossa própria sede...”



As lavadeiras no tanque branco
Lavam o espectro da guerra.
Os braços das lavadeiras
No abismo noturno
Vão e vêm.


In: Poesia liberdade. Rio de Janeiro, Agir, 1947.

Isis Priscila disse...

O mau samaritano



Quantas vezes tenho passado perto de um doente,
Perto de um louco, de um triste, de um miserável,
Sem lhes dar uma palavra de consolo.
Eu bem sei que minha vida é ligada à dos outros,
Que outros precisam de mim que preciso de Deus
Quantas criaturas terão esperado de mim
Apenas um olhar – que eu recusei.




In: A poesia em pânico. Rio de Janeiro, Cooperativa Cultural Guanabara, 1938.


Murilo Mendes

Isis Priscila disse...

Ao Aleijadinho



Pálida a lua sob o pálio avança
Das estrelas de uma perdida infância.
Fatigados caminhos refazemos
Da outrora máquina da mineração.



É nossa própria forma, o frio molde
Que maduros tentamos atingir,
Volvendo à laje, à pedra de olhos facetados,
Sem crispação, matéria já domada,



O exemplo recebendo que ofereces
Pelo martírio teu enfim transposto,
Severo, machucado e rude Aleijadinho



Que te encerras na tenda com tua Bíblia,
Suplicando ao Senhor – infinito e esculpido –
Que sobre ti descanse os seus divinos pés.

Murilo Mendes

Isis Priscila disse...

Vermeer de delft



É a manhã no copo:
Tempo de decifrar o mapa
Com seus amarelos e azuis,
De abrir as cortinas - o sol frio nasce
Nos ladrilhos silenciosos -,
De ler uma carta perturbadora
Que veio pela galera da China:
Até que a lição do cravo
Através dos seus cristais
Restitui a inocência

Murilo Mendes

Isis Priscila disse...

Noite carioca


Noite da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro
tão gostosa.
que os estadistas europeus lamentam ter conhecido tão tarde.
Casais grudados nos portões de jasmineiros...
A baía de Guanabara, diferente das outras baías, é camarada,
recebe na sala de visita todos os navios do mundo
e não fecha a cara.
Tudo perde o equilíbrio nesta noite,
as estrelas não são mais constelações célebres,
são lamparinas com ares domingueiros,
as sonatas de Beethoven realejadas nos pianos dos bairros distintos
não são mais obras importantes do gênio imortal,
são valsas arrebentadas...
Perfume vira cheiro,
as mulatas de brutas ancas dançam o maxixe nos criouléus suarentos



O Pão de Açúcar é um cão de fila todo especial
que nunca se lembra de latir pros inimigos que transpõem a barra
e às 10 horas apaga os olhos pra dormir.


Murilo Mendes

Unknown disse...

Gilda


Não ponha o nome de Gilda
na sua filha, coitada,
Se tem filha pra nascer
Ou filha pra batisar.
Minha mãe se chama Gilda,
Não se casou com meu pai.
Sempre lhe sobra desgraça,
Não tem tempo de escolher.
Também eu me chamo Gilda,
E, pra dizer a verdade
Sou pouco mais infeliz.
Sou menos do que mulher,
Sou uma mulher qualquer.
Ando à-toa pelo mundo.
Sem força pra me matar.
Minha filha é também Gilda,
Pro costume não perder
É casada com o espelho
E amigada com o José.
Qualquer dia Gilda foge
Ou se mata em Paquetá
Com José ou sem José.
Já comprei lenço de renda
Pra chorar com mais apuro
E aos jornais telefonei.
Se Gilda enfim não morrer,
Se Gilda tiver uma filha
Não põe o nome de Gilda,
Na menina, que não deixo.
Quem ganha o nome de Gilda
Vira Gilda sem querer.
Não ponha o nome de Gilda
No corpo de uma mulher.

Unknown disse...

O filho do século


Nunca mais andarei de bicicleta
Nem conversarei no portão
Com meninas de cabelos cacheados
Adeus valsa "Danúbio Azul"
Adeus tardes preguiçosas
Adeus cheiros do mundo sambas
Adeus puro amor
Atirei ao fogo a medalhinha da Virgem
Não tenho forças para gritar um grande grito
Cairei no chão do século vinte
Aguardem-me lá fora
As multidões famintas justiceiras
Sujeitos com gases venenosos
É a hora das barricadas
É a hora da fuzilamento, da raiva maior
Os vivos pedem vingança
Os mortos minerais vegetais pedem vingança
É a hora do protesto geral
É a hora dos vôos destruidores
É a hora das barricadas, dos fuzilamentos
Fomes desejos ânsias sonhos perdidos,
Misérias de todos os países uni-vos
Fogem a galope os anjos-aviões
Carregando o cálice da esperança
Tempo espaço firmes porque me abandonastes.

Unknown disse...

Cantiga de Malazarte


Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,
ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.
Não desprezo nada que tenha visto,
todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as casas penduradas na terra,
tiro os cheiros dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as consciências,
a rua estala com os meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,
não posso amar ninguém porque sou o amor,
tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste à Criação
e que bole em todas as almas que encontra.
Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo.
Nada me fixa nos caminhos do mundo.

Renata disse...

Reflexão n°.1


Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
E a circulação e o movimento infinito.


Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido.

Murilo Mendes

Renata disse...

O utopista


Ele acredita que o chão é duro
Que todos os homens estão presos
Que há limites para a poesia
Que não há sorrisos nas crianças
Nem amor nas mulheres
Que só de pão vive o homem
Que não há um outro mundo.

Murilo Mendes

Renata disse...

Modinha do empregado de banco


Eu sou triste como um prático de farmácia,
sou quase tão triste como um homem que usa costeletas.
Passo o dia inteiro pensando nuns carinhos de mulher
mas só ouço o tectec das máquinas de escrever.


Lá fora chove e a estátua de Floriano fica linda.
Quantas meninas pela vida afora!
E eu alinhando no papel as fortunas dos outros.
Se eu tivesse estes contos punha a andar
a roda da imaginação nos caminhos do mundo.
E os fregueses do Banco
que não fazem nada com estes contos!
Chocam outros contos para não fazerem nada com eles.


Também se o diretor tivesse a minha imaginação
o Banco já não existiria mais
e eu estaria noutro lugar.

Murilo Mendes

Renata disse...

A tesoura de Toledo


Com seus elementos de Europa e África,
Seu corte, inscrição e esmalte,
A tesoura de Toledo
Alude às duas Espanhas.
Duas folhas que se encaixam,
Se abrem, se desajustam,
Medem as garras afiadas:
Finura e rudeza de Espanha,
Rigor atento ao real,
Silêncio espreitante, feroz,
Silêncio de metal agindo,
Aguda obstinação
Em situar o concreto,
Em abrir e fechar o espaço,
Talhando simultaneamente
Europa e África,
Vida e morte.


In: MENDES, Murilo. Antologia poética. Sel. João Cabral de Melo Neto. Introd. José Guilherme Merquior. Rio de Janeiro: Fontana; Brasília: INL, 1976

Renata disse...

Homenagem a Oswaldo Goeldi


Oswaldo gravas:
A ti mesmo fiel, ao teu ofício,
Gravas a pobreza, o vento, a dissonância,
A rude comunhão dos homens no trabalho.
Gravas o abandonado, o triste, o único,
O peixe que te mira quase humano
— É hora de morrer —
No preto e branco, no vermelho e verde.
Qualquer traço perdido,
A casa que espia pelo olho-de-boi
Testemunha de drama anônimo.
Gravas a nuvem, o balaio,
O geleiro e seus estilhaços.
O choque em diagonal de guarda-chuvas,
Tudo o que é rejeitado, elementos marginais,
A metade dum astro que se despe
Amado só do penúltimo vadio.
Oswaldo gravas,
Gravas qualquer solidão.
Os peixeiros que partilham peixe e onda,
Pássaros de solidões de água e mato,
O sinaleiro do temporal próximo,
A barca puxada pela sirga,
O bêbedo e seu solilóquio,
A chuva e seus túneis,
O mergulho em tesoura da gaivota.
És do sol posto, da esquina,
Do Leblon e do uivo da noite.
Não sujeitas o desenho à gravação:
Liberaste as duas forças.
Atingindo agora a unidade,
Pela natureza visionária
E pelo severo ofício
A tortura dominando,
Silêncio e solidão
Oswaldo gravas.


In: MENDES, Murilo. Poesias, 1925/1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959

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Somos todos poetas



Assisto em mim a um desdobrar de planos.
as mãos vêem, os olhos ouvem, o cérebro se move,
A luz desce das origens através dos tempos
E caminha desde já
Na frente dos meus sucessores.
Companheiro,
Eu sou tu, sou membro do teu corpo e adubo da tua alma.
Sou todos e sou um,
Sou responsável pela lepra do leproso e pela órbita vazia do cego,
Pelos gritos isolados que não entraram no coro.
Sou responsável pelas auroras que não se levantam
E pela angústia que cresce dia a dia.

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Joan Miró


Soltas a sigla, o pássaro, o losango.
Também sabes deixar em liberdade
O roxo, qualquer azul e o vermelho.
Todas as cores podem aproximar-se
Quando um menino as conduz no sol
E cria a fosforescência:
A ordem que se desintegra
Forma outra ordem ajuntada
Ao real — este obscuro mito.

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O fósforo


Acendendo um fósforo
acendo Prometeu, o futuro, a liquidação dos falsos deuses,
o trabalho do homem.



o



O fósforo: tão rabbioso quanto secreto. Furioso, deli-
cado. Encolhe-se no seu casulo marrom; mas quando cha-
mado e provocado, polêmico estoura, esclarecendo tudo.
O século é polêmico.



o



O gás não funciona hoje. Temos greve dos gasistas. A
Itália tornou-se a Grevelândia. Mas preferimos essa semi-
-anarquia à "ordem" fascista.
O fósforo, hoje em férias, espera paciente no seu casulo
o dia de amanhã desprovido de greves. O dia racional, o
dia do entendimento universal, o dia do mundo sem classes,
o dia de Prometeu totalizado.



o



O fósforo é o portador mais antigo da tradição viva. Eu
sou pela tradição viva, capaz de acompanhar a correnteza
da modernidade. Que riquezas poderosas extraio dela!
Subscrevo a grande palavra de Jaures: "De l'autel des
ancêtres on doit garder non les cendres mais le feu."

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Corte transversal do poema


A música do espaço pára, a noite se divide em dois pedaços.
Uma menina grande, morena, que andava na minha cabeça,
fica com um braço de fora.
Alguém anda a construir uma escada pros meus sonhos.
Um anjo cinzento bate as asas
em torno da lâmpada.
Meu pensamento desloca uma perna,
o ouvido esquerdo do céu não ouve a queixa dos namorados.
Eu sou o olho dum marinheiro morto na Índia,
um olho andando, com duas pernas.
O sexo da vizinha espera a noite se dilatar, a força do homem.
A outra metade da noite foge do mundo, empinando os seios.
Só tenho o outro lado da energia,
me dissolvem no tempo que virá, não me lembro mais quem sou.

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Murilograma para Mallarmé



No oblíquo exílio que te aplaca
Manténs o báculo da palavra



Signo especioso do Livro
Inabolível teu & da tribo



A qual designas, idêntica
Vitoriosamente à semântica



Os dados lançando súbito
Já tu indígete em decúbito



Na incólume glória te assume
MALLARMÉ sibilino nome

Agnaldo disse...

Guernica


Subsiste, Guernica, o exemplo macho,
Subsiste para sempre a honra castiça,
A jovem e antiga tradição do carvalho
Que descerra o pálio de diamante.



A força do teu coração desencadeado
Contactou os subterrâneos de Espanha.
E o mundo da lucidez a recebeu:
O ar voa incorporando-se teu nome.

Renata disse...

Perspectiva da sala da jantar


A filha do modesto funcionário público
dá um bruto interesse à natureza-morta
da sala pobre no subúrbio.
O vestido amarelo de organdi
distribui cheiros apetitosos de carne morena
saindo do banho com sabonete barato.



O ambiente parado esperava mesmo aquela vibração:
papel ordinário representando florestas com tigres,
uma Ceia onde os personagens não comem nada
a mesa com a toalha furada
a folhinha que a dona da casa segue o conselho
e o piano que eles não têm sala de visitas.



A menina olha longamente pro corpo dela
como se ele hoje estivesse diferente,
depois senta-se ao piano comprado a prestações
e o cachorro malandro do vizinho
toma nota dos sons com atenção.


In: MENDES, Murilo. Poesias, 1925/1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959

Renata disse...

Exergo



Lacerado pelas palavras-bacantes
Visíveis tácteis audíveis
Orfeu
Impede mesmo assim sua diáspora
Mantendo-lhes o nervo & a ságoma.



Orfeu Orftu Orfele
Orfnós Orfvós Orfeles



In: Convergência. São Paulo, Duas Cidades, 1970.

Renata disse...

Murilograma a Graciliano Ramos


1



Brabo. Olhofaca. Difícil.
Cacto já se humanizando,



Deriva de um solo sáfaro
Que não junta, antes retira,



Desacontece, desquer.





2



Funda o estilo à sua imagem:
Na tábua seca do livro



Nenhuma voluta inútil.
Rejeita qualquer lirismo.



Tachando a flor de feroz.





3



Tem desejos amarelos.
Quer amar, o sol ulula,



Leva o homem do deserto
(Graciliano-Fabiano)



Ao limite irrespirável.





4



Em dimensão de grandeza
Onde o conforto é vacante,



Seu passo trágico escreve
A épica real do BR



Que desintegrado explode.



Roma, 1963


In: MENDES, Murilo. Convergência, 1963/1966: 1 — convergência; 2 — sintaxe. São Paulo: Duas Cidades, 1970.

Renata disse...

São Francisco de Assis de Ouro Preto



A Lúcio Costa




Solta, suspensa no espaço,
Clara vitória da forma
E de humana geometria
Inventando um molde abstrato;
Ao mesmo tempo, segura,
Recriada na razão,
Em número, peso, medida;
Balanço de reta e curva,
Levanta a alma, ligeira,
À sua Pátria natal;
Repouso da cruz cansada,
Signo de alta brancura;
Gerado, em recorte novo,
Por um bicho rastejante,
Mestiço de sombra e luz;
Aposento da Trindade
E mais da Virgem Maria
Que se conhecem no amor;
Traslado, em pedra vivente,
Do afeto de um sumo herói
Que junta o braço do Cristo
Ao do homem seu igual.


In: MENDES, Murilo. Poesias, 1925/1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959

Renata disse...

Saudação a Ismael Nery


Acima dos cubos verdes e das esferas azuis
um Ente magnético sopra o espírito da vida.
Depois de fixar os contornos dos corpos
transpõe a região que nasceu sob o signo do amor
e reúne num abraço as partes desconhecidas do mundo.
Apelo dos ritmos movendo as figuras humanas,
solicitação das matérias do sonho, espírito que nunca descansa.
Ele pensa desligado do tempo,
as formas futuras dormem nos seus olhos.
Recebe diretamente do Espírito
a visão instantânea das coisas, ó vertigem!
penetra o sentido das idéias, das cores, a tonalidade da Criação,
olho do mundo,
zona livre de corrupção, música que não pára nunca,
forma e transparência.


In: MENDES, Murilo. Poesias, 1925/1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959

Renata disse...

Texto de consulta


1



A página branca indicará o discurso
Ou a supressão o discurso?



A página branca aumenta a coisa
Ou ainda diminui o mínimo?



O poema é o texto? O poeta?
O poema é o texto + o poeta?
O poema é o poeta - o texto?



O texto é o contexto do poeta
Ou o poeta o contexto do texto?



O texto visível é o texto total
O antetexto o antitexto
Ou as ruínas do texto?
O texto abole
Cria
Ou restaura?





2



O texto deriva do operador do texto
Ou da coletividade — texto?



O texto é manipulado
Pelo operador (ótico)
Pelo operador (cirurgião)
Ou pelo ótico-cirurgião?



O texto é dado
Ou dador?
O texto é objeto concreto
Abstrato
Ou concretoabstrato?



O texto quando escreve
Escreve
Ou foi escrito
Reescrito?



O texto será reescrito
Pelo tipógrafo / o leitor / o crítico;
Pela roda do tempo?



Sofre o operador:
O tipógrafo trunca o texto.
Melhor mandar à oficina
O texto já truncado.





6



A palavra cria o real?
O real cria a palavra?
Mais difícil de aferrar:
Realidade ou alucinação?



Ou será a realidade
Um conjunto de alucinações?





7



Existe um texto regional / nacional
Ou todo texto é universal?
Que relação do texto
Com os dedos? Com os textos alheios?



(...)





9



Juízo final do texto:
Serei julgado pela palavra
Do dador da palavra / do sopro / da chama.



O texto-coisa me espia
Com o olho de outrem.



Talvez me condene ao ergástulo.



O juízo final
Começa em mim
Nos lindes da
Minha palavra.



Roma, 1965


In: MENDES, Murilo. Convergência, 1963/1966: 1 — convergência; 2 — sintaxe. São Paulo: Duas Cidades, 1970.

Renata disse...

Montanhas de Ouro Preto




A Lourival Gomes Machado





Desdobram-se as montanhas de Ouro Preto
Na perfurada luz, em plano austero.
Montes contempladores, circunscritos,
Entre cinza e castanho, o olhar domado



Recolhe vosso espectro permanente.
Por igual pascentais a luz difusa
Que se reajusta ao corpo das igrejas,
E volve o pensamento à descoberta



De uma luta antiqüíssima com o caos,
De uma reinvenção dos elementos
Pela força de um culto ora perdido,



Relíquias de dureza e de doutrina,
Rude apetite dessa cousa eterna
Retida na estrutura de Ouro Preto.




In: Contemplação de Ouro Preto. Rio de Janeio, MEC, 1954.

Renata disse...

Grafito numa cadeira


Cadeira operada dos braços
Fundamental que nem osso



Não poltrona com pés de metal
Knoll
Ou projetada por um sub-Moholy Nagy
Com nota didascálica



Antes cadeira no duro
Cadeira de madeira
Anônima
Inânime
Unânime
Cadeira quadrúpede



Não aguardas
Nenhuma "iluminação" particular
Nem assento e clavícula de nenhuma deusa
Que te percutisse — gong —
Nem de nenhum Van Gogh
Que súbito te tornasse
Eterna



Roma, 1964


In: MENDES, Murilo. Convergência, 1963/1966: 1 — convergência; 2 — sintaxe. São Paulo: Duas Cidades, 1970.

Renata disse...

Grafito para Ipólita


1



A tarde consumada, Ipólita desponta.



Ipólita, a putain do fim da infância.
Nascera em Juiz de Fora, a família em Ferrara.



Seus passos feminantes fundam o timbre.
Marcha, parece, ao som do gramofone.



A cabeleira-púbis, perturbante.
Os dedos prolongados em estiletes.



Os lábios escandindo a marselhesa
Do sexo. Os dentes mordem a matéria.



O olho meduseu sacode o espaço.
O corpo transmitindo e recebendo



O desejo o chacal a praga o solferino.
Pudesse eu decifrar sua íntima praça!



Expulsa o sol-e-dó, a professora, o ícone
Só de vê-la passar, meu sangue inobre



Desata as rédeas ao cavalo interno.





2



Quando tarde a revejo, rio usado,
Já a morte lhe prepara a ferramenta.



Deixa o teatro, a matéria fecal.
Pudesse eu libertar seu corpo (Minha cruzada!)



Quem sabe, agora redescobre o viso
Da sua primeira estrela, esquartejada.





3



Por ela meus sentidos progrediram.
Por ela fui voyeur antes do tempo.





4



O dia emagreceu. Ipólita desponta.



Roma 1965


In: MENDES, Murilo. Convergência, 1963/1966: 1 — convergência; 2 — sintaxe. São Paulo: Duas Cidades, 1970.

Renata disse...

Pré-história


Mamãe vestida de rendas
Tocava piano no caos.
Uma noite abriu as asas
Cansada de tanto som,
Equilibrou-se no azul,
De tonta não mais olhou
Para mim, para ninguém!
Cai no álbum de retratos.

Murilo Mendes

Renata disse...

Canto a García Lorca


Não basta o sopro do vento
Nas oliveiras desertas,
O lamento de água oculta
Nos pátios da Andaluzia.



Trago-te o canto poroso,
O lamento consciente
Da palavra à outra palavra
Que fundaste com rigor.



O lamento substantivo
Sem ponto de exclamação:
Diverso do rito antigo,
Une a aridez ao fervor,



Recordando que soubeste
Defrontar a morte seca
Vinda no gume certeiro
Da espada silenciosa
Fazendo irromper o jacto



De vermelho: cor do mito
Criado com a força humana
Em que sonho e realidade
Ajustam seu contraponto.



Consolo-me da tua morte.
Que ela nos elucidou
Tua linguagem corporal
Onde el duende é alimentado
Pelo sal da inteligência,
Onde Espanha é calculada
Em número, peso e medida.


In: MENDES, Murilo. Antologia poética. Sel. João Cabral de Melo Neto. Introd. José Guilherme Merquior. Rio de Janeiro: Fontana; Brasília: INL, 1976

Renata disse...

Elegia de Taormina


A dupla profundidade do azul
Sonda o limite dos jardins
E descendo até à terra o transpõe.
Ao horizonte da mão ter o Etna
Considerado das ruínas do templo grego,
Descansa.



Ninguém recebe conscientemente
O carisma do azul.
Ninguém esgota o azul e seus enigmas.



Armados pela história, pelo século,
Aguardando o desenlace do azul, o desfecho da bomba,



Nunca mais distinguiremos
Beleza e morte limítrofes.
Nem mesmo debruçados sobre o mar de Taormina.



Ó intolerável beleza,
Ó pérfido diamante,
Ninguém, depois da iniciação, dura
No teu centro de luzes contrárias.



Sob o signo trágico vivemos,
Mesmo quando na alegria
O pão e o vinho se levantam.
Ó intolerável beleza
Que sem a morte se oculta.


In: MENDES, Murilo. Poesias, 1925/1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959

rodrigues disse...

Estudo Quase Patético

O vento em ré maior
Prepara o temporal,
Desfolha as estátuas,
Parte as hélices dos anjos.
Ah! quem é que namora
As filhas dos açougueiros?
Sempre que passo
Diante de um açougue
Vejo a filha do açougueiro
De olhos baixos, tão triste.

O temporal arranca os postes do lugar,
Os peixes pulam na atmosfera,
A luz elétrica protesta no caos.
As ondas com trabalho
Avançam contra o farol,
Os quatro elementos em itálico
Anunciam a vinda do Anticristo
- Um som de piano
Se mantém na desordem -,
Em vez do reclamo KODAK
Se lê JUÍZO FINAL,
Mas eu não posso esquecer
As filhas dos açougueiros.

Murilo Mendes

rodrigues disse...

Meditação de Agrigento

Quem nos domara a força vã,
quem nos sufocara o instinto
Para permanecermos
Em conformidade à linha do céu,
A estas colunas perenes,
Ao oculto mar lá embaixo.

Quem nos transformara em folha
Ou no súbito lagarto
Que se esgueira sob tuas pedras,
Templo F, sereno templo F,
Arquitetura de reserva e paz.

Transformar-se ou não, eis o problema.
Durar na zona limite da memória,
Nos limbos da vontade,
Ou submeter a pedra, cumprir o ofício rude,
Aprender do lavrador e do soldado.

Qual a forma do poeta? Qual seu rito?
Qual sua arquitetura?

Mudo, entre capitéis e cactos
Subsiste o oráculo.
A manhã doura a pedra e vagos nomes,
Agrigento me contempla, e vou-me.


Murilo Mendes

rodrigues disse...

A Cartomante

Minhas pernas circulavam num céu de sabão, quando uma mulher que de tão morena parecia a estátua da Fatalidade plantou-se diante de mim. Imediatamente nasceram dois baralhos de suas mãos. Diversos senadores, choferes, estudantes, operários e o núncio apostólico suicidaram-se na frente dela. Eu também devo ter me suicidado, só que o poeta é o tipo do sobrevivente. Ela ainda agarrou pela aba do roupão o banhista José, mas o herói deslizou na primeira onda de som e caiu no mar. A mulher soltava mentiras a todo instante. Cada vez que ela soltava uma mentira, nascia uma roseira. Em breve a praça tornou-se coalhada de roseiras com seus cinemas, suas confeitarias, seus bordéis, seus anúncios luminosos, seus bancos, suas guilhotinas. Os peixes cintilavam no céu, e, movendo graciosamente as barbatanas, faziam vibrar a música das esferas. Diante do espetáculo da ordem da criação, meu espírito bárbaro levantou as camadas de sífilis e de pesadelo que me legaram os retratos de meus avós cretinos, e gritou diante do mar coalhado de paquetes:

"Mulher que pareces contemporânea do 1o tempo do espírito, explique-me, ô anjo máquina de costura-caos, por que existe um limite para a desarmonia; por que os anjos não atropelam os geômetras na rua; por que os capitalistas nas suas casas; por que as diabas-antenas não atropelam os músicos nas suas cabeças; por que a minha namorada não me matou".

Aposto um mamão contra a eternidade que a mulher ia responder; mas um aeroplano que passava atirou uma bomba de tinta Eureka na cabeça dela. O ar ficou tão lavado e transparente que eu pude distinguir com nitidez a linha que vai do equador ao pólo; em cima dela um japonês se equilibrava, jogando bilboquê com a cabeça de um chinês. (1933)

Murilo Mendes

Unknown disse...

A tesoura de Toledo


Com seus elementos de Europa e África,
Seu corte, inscrição e esmalte,
A tesoura de Toledo
Alude às duas Espanhas.
Duas folhas que se encaixam,
Se abrem, se desajustam,
Medem as garras afiadas:
Finura e rudeza de Espanha,
Rigor atento ao real,
Silêncio espreitante, feroz,
Silêncio de metal agindo,
Aguda obstinação
Em situar o concreto,
Em abrir e fechar o espaço,
Talhando simultaneamente
Europa e África,
Vida e morte.

Unknown disse...

Canção do exílio


Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia.



Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!

Unknown disse...

Homenagem a Oswaldo Goeldi


Oswaldo gravas:
A ti mesmo fiel, ao teu ofício,
Gravas a pobreza, o vento, a dissonância,
A rude comunhão dos homens no trabalho.
Gravas o abandonado, o triste, o único,
O peixe que te mira quase humano
— É hora de morrer —
No preto e branco, no vermelho e verde.
Qualquer traço perdido,
A casa que espia pelo olho-de-boi
Testemunha de drama anônimo.
Gravas a nuvem, o balaio,
O geleiro e seus estilhaços.
O choque em diagonal de guarda-chuvas,
Tudo o que é rejeitado, elementos marginais,
A metade dum astro que se despe
Amado só do penúltimo vadio.
Oswaldo gravas,
Gravas qualquer solidão.
Os peixeiros que partilham peixe e onda,
Pássaros de solidões de água e mato,
O sinaleiro do temporal próximo,
A barca puxada pela sirga,
O bêbedo e seu solilóquio,
A chuva e seus túneis,
O mergulho em tesoura da gaivota.
És do sol posto, da esquina,
Do Leblon e do uivo da noite.
Não sujeitas o desenho à gravação:
Liberaste as duas forças.
Atingindo agora a unidade,
Pela natureza visionária
E pelo severo ofício
A tortura dominando,
Silêncio e solidão
Oswaldo gravas.

Unknown disse...

Murilo menino


Eu quero montar o vento em pêlo,
Força do céu, cavalo poderoso
Que viaja quando entende, noite e dia.



Quero ouvir a flauta sem fim do Isidoro da flauta,
Quero que o preto velho Isidoro
Dê um concerto com minhas primas ao piano,
Lá no salão azul da baronesa.



Quero conhecer a mãe-d'água
Que no claro do rio penteia os cabelos
Com um pente de sete cores.



Salve salve minha rainha,
Ó clemente ó piedosa ó doce Virgem Maria,
? Como pode uma rainha ser também advogada.

Unknown disse...

O homem, a luta e a eternidade

Murilo Mendes


Adivinho nos planos da consciência
dois arcanjos lutando com esferas e pensamentos
mundo de planetas em fogo
vertigem
desequilíbrio de forças,
matéria em convulsão ardendo pra se definir.
Ó alma que não conhece todas as suas possibilidades,
o mundo ainda é pequeno pra te encher.
Abala as colunas da realidade,
desperta os ritmos que estão dormindo.
À guerra! Olha os arcanjos se esfacelando!


Um dia a morte devolverá meu corpo,
minha cabeça devolverá meus pensamentos ruins
meus olhos verão a luz da perfeição
e não haverá mais tempo.

Unknown disse...

METAFÍSICA DA MODA FEMININA



Tudo o que te rodeia e te serve

Aumenta a fascinação e o enigma.

Teu véu se interpõe entre tie meu corpo,

É a grade do meu cárcere.

Tuas luas macias ao tato

Fazem crescer a nostalgia das mãos

Que não receberam meu anel no altar.

Tua maquilagem

É uma desforra sobre a natureza.

Tuas jóias e teus perfumes

São necessários a ti e à origem do mundo

Como o pão ao faminto.

Eu me enrolo nas tuas peles nos teus boás

Rasgo teu peitilho de seda

Para beijar teus seios brancos

Que alimentam os poemas

Entreabro a túnica fosforescente

Para me abrigar no teu ventre glorioso

Que ampliou o mundo ao lhe dar um homem a mais.

Teus vestidos obedecem a um plano inspirado

Correspondem-se com o céu com o mar as estrelas

Com teus pensamentos teus desejos tuas sensações.

A natureza inteira

É retalhada para ornar teu corpo

Os homens derrubam florestas

Descem até o fundo das minas e dos mares

Movem máquinas teares

Soltam aviões pelos ares

Lutam pela posse da terra matam e roubam pelo teu corpo.

O mundo sai de ti, vem desembocar em ti

E te contempla espantado e apaixonado,

Arco-íris terrestre,

Fonte da nossa angústia e da nossa alegria.



Tudo que faz parte de ti — desde teus sapatos ­

Está unido ao pecado e ao prazer,

À teologia, ao sobrenatural.